Uma virada de década pode ser um copo meio cheio ou um copo meio vazio – nesse caso, o começo de uma ou o final de outra. O inegável é que, cheia ou vazia, uma virada de década traz grandes mudanças, seja por escolha ou simplesmente pelo acaso, e essa sensação inevitável estava no ar na virada dos anos 70 para os 80. Não é que a entrada para os anos 70 tenha sido fácil, muito pelo contrário. O AI-5, decretado no final de 1968, reforçando a censura, prisão, proibição e tortura, contrastava com o espírito de liberdade em uma contracultura que crescia no mundo todo e que já se apresentava por aqui naquele ano. Nas artes de 1968, Tropicalia ou Panis Et Circenses na música, O Bandido da Luz Vermelha no cinema, Seja Marginal Seja Herói nas artes plásticas. Produções artísticas com ar de manifesto. Era o copo se enchendo ou se esvaziando de vez.
Médici assume a presidência em 1969 e se inicia o período paradoxal do “milagre econômico” e também dos “anos de chumbo”. Os investimentos financeiros e a violência na repressão, ao mesmo tempo, estavam cada vez maiores. Sganzerla mais uma vez chama atenção, agora com A Mulher De Todos, produção paulista, e Reginaldo Faria com Os Paqueras, no Rio. Os pólos culturais do cinema brasileiro pareciam ter encontrado, por caminhos opostos, a direção para seguir na década seguinte: a comédia erótica (posteriormente chamada de pornochanchada), uma filha bastarda e bastante controversa da Ditadura. A década de 70 se iniciava recheada de contradições: censura x contracultura, anos de chumbo x milagre econômico, pornochanchada x conservadorismo. Em copos cheios e vazios, essa muito provavelmente foi a década mais importante para a produção artística do país.
Com todos esses elementos, encerrar essa década seria algo difícil. Seria, se não guardasse suas contradições até o fim. Em Porto Alegre, longe demais das capitais, um filme comemorou essa mudança e até provocou com uma gíria setentista: Deu Pra Ti Anos 70.
No filme gaúcho, o tempo provou que estavam corretos em comemorar; afinal, a década trouxe glória a muitos envolvidos na produção: na trilha sonora, Nei Lisboa praticamente inicia sua carreira com o filme e se torna conhecido após apresentações com o guitarrista Augusto Licks (também na trilha do filme e que pro meio da década foi integrante da fase mais importante dos Engenheiros do Hawaii). Giba Assis Brasil, um dos diretores, depois de dividir algumas direções e assistências, se consagrou como montador e colaborador de roteiros de outro gaúcho daquela geração, Jorge Furtado. A colaboração evoluiu para a fundação da Casa De Cinema de Porto Alegre.
Os gastos do “milagre econômico” resultaram numa “geração perdida” e na presidência, outra troca: Figueiredo assumia em 1979, prometendo anistia e reabertura política, causando reação na ala militar radical e uma onda de atentados com explosões de bombas. Nas contradições finais de 1979, um outro tipo de bomba explodiria no cinema brasileiro: um mandado judicial alegando “qualidades artísticas” conseguiu liberar a exibição d'O Império Dos Sentidos (1976) em uma mostra de cinema. O filme japonês com seu mandado inaugurava, talvez acidentalmente, a era do sexo explícito no cinema brasileiro.
Uma era se iniciava enquanto outras se encerravam. Se o sexo explícito foi por escolha, essas foram pelo acaso: Glauber Rocha e Amácio Mazzaropi, sempre em lados extremamente opostos no espectro cinematográfico, dirigiram seus últimos filmes no mesmo ano de 1980 e morreram no ano seguinte. Era o fim da pornochanchada, do Cinema Novo e da comédia popular caipira. Era o fim dos anos 70.
Nas próximas semanas, vamos publicar aqui no Peliplat alguns textos numa série sobre a transição para os anos 80 e como o Cinema Brasileiro retratou esse período interessantíssimo de reflexão.
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