Relatos Selvagens – Explorando a vingança

Spoilers

No centro de toda boa história está o seu tema: tem que ser relevante, falar sobre alguma verdade humana e ser bem explorado – neste último ponto é onde acho que a maioria das histórias fracas tropeça. Mas Relatos Selvagens não tem uma história fraca. Produção argentina de 2014, Relatos Selvagens é um exemplo perfeito de como usar uma antologia, explorando o tema da vingança por meio de seis histórias diferentes, cada uma com sua própria questão. Ainda melhor, porém, é como nenhuma dessas questões é respondida, forçando o público a refletir sobre si mesmo. Então, como um exercício de análise, vamos dar uma olhada em qual pergunta cada história está fazendo e como diferentes elementos trazem elas à tona.

Os Ratos – Personagens

Julieta Zylberberg e Rita Cortese retratando pontos de vista opostos.
Julieta Zylberberg e Rita Cortese retratando pontos de vista opostos.

Vou pular direto para a segunda história, Os Ratos, porque o impacto da primeira só é sentido depois de todas as outras. Em Os Ratos, uma garçonete dá as boas-vindas a um cliente que conhece bem – é um agiota de sua cidade natal que levou seu pai ao suicídio e assediou sua mãe. Ela conversa com a cozinheira, que sugere matar o homem. A garçonete não concorda, mas a cozinheira secretamente envenena a comida. A garçonete descobre, mas não tenta impedir o homem de comer – até que o filho do homem entra e começa a comer também.

O dilema da personagem levanta a questão: até onde devemos ir em nome da justiça? A cozinheira representa um extremo, acreditando que os fins justificam os meios, não se importando com a morte de um menino inocente nem com a possibilidade de ir para a prisão. A garçonete, por outro lado, não está disposta a uma punição no mesmo nível do dano causado. As opiniões das duas são opostas, nenhuma delas correta, e criam o contexto perfeito para forçar o público a refletir sobre a questão.

O mais forte – Diálogo

Tudo o que sobra dos personagens de Leonardo Sbaraglia e Walter Donado no final.
Tudo o que sobra dos personagens de Leonardo Sbaraglia e Walter Donado no final.

Na terceira história, há dois personagens principais – um homem rico e um trabalhador. Quando bloqueado pelo carro do trabalhador na estrada, o rico o xinga e sai em alta velocidade. Logo, porém, seu carro quebra e o trabalhador o alcança. O que se segue pode ser melhor descrito como uma farsa, pois cada um deles tenta levar a melhor sobre o outro. Começam com xingamentos e ameaças, danos materiais, até a morte horrível de ambos em um incêndio no carro. O filme termina com uma cena de seus esqueletos carbonizados enquanto a polícia especula o que aconteceu, sugerindo que, com base em sua posição, pode ter sido um crime passional.

Com a possibilidade de as mortes serem resultado de um crime, coloca a questão: pelo que vale a pena se vingar? Os investigadores não imaginam que uma cena tão horrível seria o resultado de algo tão básico quanto uma briga na estrada, e isso faz o público questionar, também, se esta é uma conclusão lógica para a disputa inicial. Mais uma vez, obviamente não é, mas isso levanta a questão de por que vale a pena se vingar se essa for uma consequência possível, embora altamente improvável.

A bombinha – Reviravolta

O personagem de Ricardo Darín, preso, mas finalmente conseguindo o que queria.
O personagem de Ricardo Darín, preso, mas finalmente conseguindo o que queria.

Uma coisa que aprendi com minha experiência na França e nos países colonizados por ela é que não há mal maior neste planeta do que a burocracia, e é exatamente isso que o personagem principal da quarta história de Relatos Selvagens também descobre. Quando seu carro é rebocado, mesmo que estacionado em uma vaga legal, ele tenta reclamar. Na primeira vez, ele falha; na segunda, recorre à violência e acaba perdendo o emprego e a família. Sentindo que não tem outra opção, ele prepara seu carro para explodir no estacionamento onde está apreendido, o que o leva à prisão, mas, assim, conquista o amor de sua família e do povo.

Dados os diferentes resultados de cada tentativa de vingança, parece que A bombinha quer que consideremos o que esperamos receber com a vingança. Apesar de seu objetivo de evitar as multas, o homem acaba iniciando um movimento social contra a corrupção do governo. Em uma reviravolta inesperada, parece que sua verdadeira felicidade não vem de evitar multas ou causar mudanças sociais, mas, sim, do amor e respeito que conquistou de sua família e companheiros de prisão, algo que nunca planejou. Então, a questão é: quais são nossas verdadeiras motivações quando buscamos vingança?

A proposta – Prenúncio

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Uma transmissão de TV onde um homem jura sua vingança final... e acerta a pessoa errada.

A proposta foca em uma família que tenta lidar com um atropelamento causado pelo filho, que resulta na morte de uma mãe e seu filho ainda não nascido. Depois de ser subornando, é decidido que o jardineiro assumirá a responsabilidade. Há um ponto em que o filho deseja aceitar as consequências de seus atos, mas é rapidamente convencido pela mãe. No final, o jardineiro sai com o policial, sendo agredido e provavelmente assassinado pelo marido da vítima, plano que havia mencionado anteriormente na tv.

Esse prenúncio serve como uma maneira de fazer o público enfrentar a pergunta assombrosa “estamos nos vingando das pessoas certas?”, muito antes de ver a resposta. O filho deve ser punido. Embora a corrupção dos outros personagens os faça parecer muito mais repugnantes, o pobre jardineiro só quer dinheiro para sua família sofredora. Relatos Selvagens nos lembra tudo o que não vemos, tudo o que acontece nos bastidores, e nos obriga a nos perguntar se fazemos o bem ou o mal quando nos vingamos das pessoas erradas.

Até que a morte nos separe – Arquétipos

Tudo o que sobra do bolo de casamento dos personagens de Erica Rivas e Diego Gentile depois de algumas revelações desagradáveis.
Tudo o que sobra do bolo de casamento dos personagens de Erica Rivas e Diego Gentile depois de algumas revelações desagradáveis.

A história final retrata um casamento que, apesar de um começo feliz, dá errado quando a noiva descobre que seu marido a está traindo – e que a amante foi convidada para o casamento. Em sua angústia, ela corre para o telhado, onde encontra um homem que a conforta. Surpreendendo ninguém, eles começam a se beijar e, quando o noivo os pega, ela ameaça acabar com sua vida. A festa segue com momentos bombásticos – como quando a noiva joga a amante do parceiro contra o espelho violentamente. No final, porém, os dois se reconciliam, dançando enquanto o casamento continua nas ruínas do salão.

A questão aqui é a mais básica em relação à vingança: devemos perdoar? O que é inteligente, no entanto, é que o filme não dá a resposta óbvia “sim”. Ao pegar uma imagem arquetípica de um casal se reconciliando e contrastando-a com suas ações horríveis, o público não consegue não se perguntar se não teria sido melhor que os dois ficassem com raiva e terminassem oficialmente. Tendo sido ensinados desde tenra idade a perdoar e esquecer, raramente pensamos em questionar isso, mas Até que a morte nos separe entrega a história perfeita para nos lembrar que talvez valha a pena uma consideração mais aprofundada.

Pasternak – O desconhecido

A mãe e o pai de Pasternak percebendo sua morte iminente.
A mãe e o pai de Pasternak percebendo sua morte iminente.

Todas essas histórias nos levam de volta à primeira – Pasternak. Nela, todos os passageiros de um avião lentamente percebem que conhecem o mesmo homem – e que todos foram indelicados com ele em algum momento da vida. Uma comissária de bordo informa aos passageiros que o homem, Pasternak, entrou na cabine e não saiu. Imediatamente, todos entendem o que está acontecendo e o avião começa a despencar. Eles imploram que Pasternak se acalme, mas sem sucesso, e o filme congela quando estão prestes a bater na casa dos pais de Pasternak.

Ao longo de tudo isso, porém, nunca vemos Pasternak, e esse homem desconhecido no centro do terror nos lembra de outro desconhecido que todos devemos temer: quem iria querer se vingar de nós? Deixei essa história para o final porque se torna muito mais horripilante com o contexto das seguintes, obrigando o público a ponderar não só as suas respostas às questões, mas também as de outras pessoas. Se alguém quisesse se vingar de você, até onde iria? Seria por algo que vale a pena? O que esperam ganhar com isso? Você realmente tem culpa? Eles te perdoariam? A parte mais assustadora dessas perguntas é que sabemos que, em algum lugar lá fora, há alguém disposto a ir a extremos por motivos mesquinhos, seja você o culpado, ou não.

Não se esqueçam de curtir meu artigo e deixar um comentário! Adoraria saber o que vocês acharam de Relatos Selvagens e se há algum outro filme que acham que fez um trabalho igualmente bom explorando seu tema central.

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