O filme autobiográfico de J.D. Vance é tão ruim como (quase) todos dizem?

Image descriptionDonald Trump teve sucesso na campanha presidencial, e seu companheiro de chapa, J.D. Vance, também conquistou uma grande vitória política, passando de autor de best-sellers e investidor de risco ao cargo de vice-presidente dos Estados Unidos a partir de 2025. Se tivesse acontecido há 20 ou 30 anos, essa ascensão triunfal teria sido instintivamente adotada como a personificação do Sonho Americano, que teria atraído Hollywood e conquistado várias pessoas nos Estados Unidos.

No entanto, atualmente, a vida de Vance está cercada por uma grande controvérsia. Sua transformação de um crítico ferrenho em um fervoroso apoiador de Trump levanta dúvidas sobre o fato de ele ser simplesmente um oportunista. Ele alegou ter escrito um livro que dava voz à classe trabalhadora do Cinturão da Ferrugem, mas, na realidade, chamou seus moradores de preguiçosos e apáticos, piorando as condições que eles já enfrentavam. Enquanto isso, Vance ganhou uma fortuna no mundo dos investimentos de risco, apoiado por fundos de Wall Street e do Vale do Silício. Com um caráter tão multifacetado, é difícil determinar o grau de sinceridade por trás de suas diversas declarações.

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Portanto, a adaptação da autobiografia de Vance em um filme tornou-se uma tarefa complicada, sobretudo para Hollywood, que é predominantemente liberal (em inglês, a palavra liberal é geralmente associada à esquerda na política). O simples fato de assumir esse projeto exigiu muita coragem. Mas depois de assistir ao filme da Netflix Era uma Vez um Sonho (2020), acredito que o diretor Ron Howard fez um excelente trabalho com esse desafio. Como um cineasta veterano e experiente, Howard conta uma história que poderia facilmente ter sido retratada de maneira simplificada ou sensacionalista com uma sutileza incrível. Ele não foi influenciado pela política ou pelas emoções, e abordou o filme com bom senso, apresentando uma história humana universal de pobreza, lutas herdadas e transformações revolucionárias.

Era uma Vez um Sonho se desenrola com duas narrativas paralelas: uma acompanha os primeiros anos da infância de J.D. em Ohio, enquanto a outra mostra J.D. recebendo a notícia de que a mãe, Beverly, sofreu uma overdose e está em coma, justamente quando ele está se preparando para uma importante entrevista de estágio. J.D. retorna à sua cidade natal para cuidar da mãe, e as lembranças — as boas e as frustrantes — começam a ressurgir.

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O filme apresenta os desafios enfrentados pelo Cinturão da Ferrugem: o colapso das indústrias tradicionais, o declínio econômico e a desilusão da classe trabalhadora que já foi a base da economia norte-americana. Sem perspectivas de um futuro melhor, muitos são levados à ruína, tendo suas vidas consumidas por álcool, remédios controlados e substâncias ilícitas.

Tanto a avó quanto a mãe de J.D. são vítimas dessas circunstâncias, embora a queda de Beverly tenha sido mais grave. Ambas cresceram em uma vida de pobreza, repleta de brigas e abusos domésticos, e passaram esse estilo de vida para a geração seguinte. Acima de tudo, o filme destaca o declínio sem solução que afeta toda a região central dos Estados Unidos. Pessoas comuns e trabalhadoras são abandonadas, enquanto aqueles que são capazes de burlar o sistema social conseguem melhorar suas vidas.

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J.D. quase sucumbiu a esse ciclo de pobreza. O comportamento instável da mãe prejudicava constantemente sua educação, e ele quase desistiu de estudar para se juntar a seus amigos rebeldes. Foi a intervenção da avó que lhe deu uma segunda chance. Ela acolheu J.D., longe da mãe, e supervisionou rigorosamente seus estudos e suas amizades.

Quando J.D., sentindo-se sobrecarregado, pergunta à avó: “Por que você não pode me deixar ir embora?”, ela responde: “Não vou viver para sempre. Alguém precisa cuidar dessa família, cuidar da sua mãe.”

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Era uma Vez um Sonho oferece um raro vislumbre das tradições familiares do Sul e do Centro-Oeste dos Estados Unidos nos filmes de Hollywood. As linhagens carregam fardos e fortalecem esses personagens. É sua linhagem que inspira a avó a salvar J.D. da beira da autodestruição e o incentiva a escapar de um ambiente sem esperança, buscar uma educação melhor e, por fim, enxergar os problemas estruturais do Cinturão da Ferrugem de uma perspectiva mais elevada.

Por um lado, Ron Howard retrata com maestria os conflitos e os laços entre três gerações de uma família. Por outro lado, na história adulta de J.D., ele ilustra sutilmente a arrogância exibida pelas elites da Costa Leste ao se depararem com as origens humildes de J.D.

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Uma pessoa da elite da Ivy League, ao jantar com J.D., acaba usando o termo pejorativo “caipira”, mas ele responde: “Não usamos essa palavra para descrever uns aos outros de onde eu venho”, deixando a mesa em silêncio. Porém, outro colega não consegue resistir a perpetuar o estereótipo de que os norte-americanos da classe média são pouco refinados e têm pouca educação e, mais uma vez, J.D. responde: “Minha mãe foi a oradora da formatura do ensino médio. Ela é a pessoa mais inteligente que eu conheço, provavelmente mais inteligente do que qualquer um de nós nesta mesa.”

Todo mundo fica em um profundo silêncio. A única resposta vem de um executivo de Washington: “Parece que deveríamos oferecer um emprego para sua mãe.”

Dois dias depois, é esse mesmo executivo que, impressionado com a franqueza de J.D., o ajuda a passar na entrevista de estágio.

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Essa cena ilustra de maneira brilhante a complexa relação entre as elites norte-americanas e a classe trabalhadora. Como Vance escreve em seu livro:

“Às vezes, aqueles que estão no poder oferecem ajuda real a pessoas como eu, mesmo que não entendam verdadeiramente nossas necessidades.”

Em meio à tensão entre a elite e as classes mais baixas, o passado e o presente, a profunda conexão emocional com o Cinturão da Ferrugem e a frustração com sua falta de progresso, Ron Howard cria uma história cheia de amor e ódio. Ele nos permite testemunhar as lutas de pessoas como J.D., os infortúnios herdados pelos moradores do Cinturão da Ferrugem e as vozes dessas pessoas revoltadas e silenciadas. Por muito tempo, essas vozes foram ignoradas por Hollywood, mas isso precisa mudar.

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No cenário atual, dominado pela tendenciosidade e por narrativas emocionais, Era uma Vez um Sonho é um filme raro que exige consenso. Ele não busca uma catarse imediata nem ataca aqueles que têm opiniões contrárias, mas tenta encontrar um ponto em comum para aqueles com perspectivas conflitantes.

Filmes como esse podem não competir diretamente com aqueles que visam um conteúdo chocante e extremo, mas precisamos de vozes mais racionais. Somente quando essas vozes aumentarem, o mundo dilacerado poderá iniciar o processo de cura.

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Oswaldo Ferrer

Gostei do seu artigo, é bem merecido, convido-o a visitar e gostar do meu -
https://www.peliplat.com/es/article/10039803/rocket-raccoon-el-corazon-roto-de-guardianes-de-la-galaxia-vol-3

01:25 21 de Janeiro de 2025
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