Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas
---------------
Em 1975, Vinicius de Moraes, o poetinha, escreveu um livro de poemas infantis intitulado A Arca de Noé. O livro não conta uma história e os poemas mal conversam entre si, mas ainda assim virou um álbum em 1980, com a interpretação de grandes nomes da música brasileira como Milton Nascimento, Chico Buarque, Elis Regina, Alceu Valença, Moraes Moreira… O disco gerou o primeiro especial infantil musical da Rede Globo, que foi ao ar em 10 de outubro daquele ano. Vinicius morreu três meses antes, pouco após a finalização do volume 2 da Arca.
Eu tinha nove anos quando ganhei esse disco, 21 anos após seu lançamento, e lembro de me comover e me emocionar ao ouvir Milton Nascimento entoar “E os fracos, humildemente / Vêm atrás, como na vida”, na faixa que leva o mesmo nome do álbum. Eu cresci numa casa em que se ouvia (e se ouve até hoje) muita MPB, por isso fui com certa expectativa para esse lançamento.
Arca de Noé é uma coprodução entre Brasil e Índia, e tem grandes nomes brasileiros por trás, como Walter Salles e os irmãos Fabiano e Caio Gullane. Sérgio Machado é o coração da história: assume a direção e o roteiro, além de ter construído boa parte do projeto com Suzana de Moraes, primogênita de Vinicius, que faleceu em 2015, e sonhava em levar os poemas do pai para a telona. Machado divide a direção com Alois di Leo, que cuidou mais da parte da animação, e no texto teve ao seu lado Ingrid Guimarães e Heloísa Périssé, que também dão voz à Pomba Sônia e a Dona Furona, respectivamente.
Como diria o meme, Deus está triste com tanto áudio de WhatsApp e decide inundar a Terra. A voz (que não poderia ser outra, a não ser Seu Jorge), então, ordena que Noé construa uma arca, reúna um casal de cada espécie, e… bem, vocês conhecem a história.
Uma dupla de amigos, no entanto, não quer se separar e pensa em como fazer para que os dois consigam entrar na arca, apesar de serem machos. Vini (Rodrigo Santoro), como não poderia deixar de ser, é um poeta, enquanto seu parceiro Tom (Marcelo Adnet) não larga o violão. E que honra sermos brindados com o talento musical de Marcelo Adnet nesse papel! Junto com a ratinha Nina (Alice Braga) e outros animais vistos como rejeitados (como uma barata de nome Alfonso), eles lutam contra o autoproclamado dono-de-tudo Baruk, um leão com a voz brilhantemente feita por Lázaro Ramos.
Se o álbum lançado em 80 trazia grandes nome da música brasileira, o filme não fica atrás no elenco: além dos já mencionados, Débora Nascimento, Bruno Gagliasso, Eduardo Sterblitch, Babu Santana, entre muitos outros, se juntam ao show de talentos que acontece na Arca de Noé. Santoro, Adnet e Braga ainda repetiram a parceria e botaram o inglês pra jogo colocando suas vozes também na versão internacional.
Aliás, este é um projeto que já nasceu visando ganhar o mundo: durante a coletiva, produtores e diretores explicaram que vários países foram cogitados para a pré-produção, mas viram na parceria com a Índia a mistura ideal entre a expertise que faltava aqui e a criatividade brasileira, e se orgulham ao dizer que todos os líderes criativos no processo eram brasileiros. Nosso DNA é bastante evidente na produção e aparece logo na primeira sequência, enquanto os ratinhos cantam “A Casa”, ao ritmo de samba, em um bar, mas sem sucesso, sendo expulsos pela dona. Quer algo mais brasileiro do que precisar se virar nos 30?
É uma delícia tentar adivinhar de quem é cada voz enquanto assiste, mas também há vários easter eggs e singelas homenagens ao longo do filme, além de memes, é claro! O filme não esconde que foi feito por gerações anteriores à Gen Z, e é bastante cringe nas frases de efeito ou quando cita o Tiktok, por exemplo. Como boa millennial, eu adorei! Pelo texto e mesmo pela memória da Arca de Noé, eu diria que é uma produção mais para os pais do que para os filhos. Quando penso como as coisas têm mudado tão rapidamente nas últimas décadas, eu arrisco dizer que nunca tivemos pais e filhos tão distantes, em especial, tecnologicamente. Muitos já nasceram em um mundo cheio de tecnologia e o fato de Vinicius ter morrido há mais de 40 anos talvez o tenha afastado um pouco dos mais novos. Pensando nisso tudo, acho que o filme cumpre o que se propõe a fazer: reunir gerações a partir de uma figura tão importante da nossa cultura como foi Vinicius.
E aqui uma rápida observação: durante a coletiva, tanto produtores como elenco mencionaram como o poeta já não é mais tão conhecido, mas Mariana de Moraes destacou que sempre que conhece algum Vinicius que é mais novo que ela, esse diz que seu nome foi dado em homenagem a seu avô. “Ele continua presente!" A cantora e neta de Vinicius interpreta “A Casa” no longa e revelou que era um desejo de Suzana incluí-la neste projeto. Sérgio prometeu que assim o faria e cumpriu.
Mariana contou, também, que Vinicius sabia compor, mas não colocava melodias em suas letras pois gostava do trabalho em conjunto. E aqui entra o que pra mim é sua principal magia: tudo neste projeto carrega a simbologia do coletivo e da grandiosidade. Vinicius de Moraes é um nome imensurável da cultura brasileira, criou poemas que seriam musicados inspirados na arca de Noé, história bíblica de um barco tão, mas tão grande que deveria carregar um casal de cada espécie. Como se não bastasse, esta é a maior animação em 3D da história brasileira, gravada simultaneamente em dois idiomas (português e inglês). E apesar de alguns movimentos que tentam promover boicote ao filme, ele também atravessará essa longa tempestade. Afinal, é uma obra de Vinicius.
Compartilhe sua opinião!
Seja a primeira pessoa a iniciar uma conversa.