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Crítica - O SENHOR DOS MORTOS - O Luto é Para Sempre

Não existe fórmula para o luto. Experiências variadas podem até expressar pontos em comum, dos quais pessoas que estejam passando por isso podem aprender algo, ou reconhecer um caminho para seguir em frente. Mas, no geral, o luto vai afetar cada um de uma forma diferente. Vai alterar a química do seu cérebro de formas inesperadas. E, depois de algum tempo, vai te apresentar a uma pessoa nova quando se olhar no espelho. Então, para um cara como David Cronemberg, que passou a carreira criando histórias que adentram os aspectos mais sombrios da mente humana, ao mesmo tempo que confrontam nossa natureza original com os nossos reflexos artificiais, como o luto se manifesta? O novo filme do diretor, O Senhor dos Mortos (The Shrouds), começou a ser idealizado após a morte de sua esposa, em 2017, e o efeito transformador do luto é seu principal tema.

O filme conta a história do rico empresário Karsh (Vincent Cassel), e seu projeto mais recente de tecnologia funerária. "As Mortalhas", como ele as batizou, são sepulturas especiais que permitem que os familiares das pessoas sepultadas possam assistir seus cadáveres em tempo real. Assim, podem acompanhar a decomposição dos corpos de seus entes queridos através de recriações em 3D hiper-realista. Apesar da controvérsia gerada pelo projeto, alguns cemitérios ao redor do mundo começam a adotar a tecnologia desenvolvida por Karsh. Mas o primeiro a fazer isso é aquele no qual Becca, a falecida esposa de Karsh, está enterrada. Foi a perda da esposa que levou Karsh a ter a ideia das Mortalhas. "Eu percebi que queria estar dentro da sepultura com ela", ele diz no começo do filme, afirmando que conseguia alguma paz ao assistir a transformação do cadáver de Becca, mutilado por um longo e intenso tratamento do câncer em seus ossos.

Além de Becca, Diane Kruger também interpreta sua irmã gêmea Terry, que tem uma relação um pouco conflitante com Karsh, marcada pelo luto compartilhado mas também por uma bizarra tensão sexual. E ela também dá a voz a Hunny, uma inteligência artificial que serve de assistente pessoal para Karsh, cujo avatar virtual tem a aparência idêntica à de Becca. É como se Karsh se cercasse da imagem da falecida esposa, em Terry, em Hunny e através da Mortalha. Mas também numa série de flashbacks que podem ser lembranças ou pesadelos, que listam cada mutilação e humilhação que Becca sofreu até sua morte. Uma noite, várias das sepulturas que Karsh projetou são profanadas, incluindo a de sua esposa. Isso acontece logo depois de Karsh descobrir, através da imagem da Mortalha, estranhas formações aparecendo no cadáver dela. A partir disso, Karsh começa uma investigação para descobrir os culpados, o que o coloca em parceria com Maury (Guy Pearce), ex-marido de Terry, que também foi o programador que desenvolveu Hunny.

Muitas das marcas clássicas de estilo e narrativa de Cronemberg estão presentes nesse novo trabalho. Por exemplo, a evocação de imagens perturbadoras e emocionalmente profundas, como a figura do cadáver recém falecido de Becca sendo tratado tanto como um ideal inalcançável e um fantasma inescapável. Há dois momentos especialmente desconcertantes em que a imagem dela é projetada em outras personagens, uma vez para caçoar de Karsh, e na outra para selar seu destino. Além disso, há o tema do sexo como catalisador de traumas e transformações, que também sempre aparece em seus filmes. Terry, por exemplo, sente excitação sexual através da paranóia, tendo um fetiche bem específico por teorias de conspiração. Por isso, a investigação de Kasrh aproxima os dois, concluindo numa cena de sexo bizarra por deixar claro o que cada um dos dois está buscando - mas ainda assim, terna, por se aceitarem. Também há a mistura do orgânico e do artificial que Cronemberg adora. O visual frio, futurista e industrial das Mortalhas combinado com sua função ritualística, são um reflexo da própria personalidade de Karsh, que parece ser um cometário do diretor sobre a figura desses novos barões da tecnologia como Jeff Bezos e Elon Musk, obcecados pelo próprio trabalho e pela própria imagem. A aparência de Hunny, por exemplo, é totalmnete baseada na daqueles avatares do Facebook. Karsh até dirige um carro da Tesla, e o logo da companhia aparece tão óbvio em uma cena que eu cheguei a pensar que era propaganda.

Infelizmente todos esses temas parecem meio desconectados entre si na narrativa arrastada do filme. A trama é verborrágica, dependendo muito mais de uma série interminável de diálogos que expõe essas discussões, às vezes de maneira bem óbvia. Ainda assim, esse deve ser um dos filmes mais pessoais de Cronemberg. De certa forma, é quase um remake espiritual de um outro filme seu, Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991). Mas se naquela adaptação do livro de William Burroughs, a experiência do escritor com a morte da esposa era o motor da narrativa, aqui Cronemberg tira apenas de si mesmo. Inclusive, a caracterização de Vincent Cassel como Karsh remete à figura do diretor. Além disso, reconhecer os problemas técnicos e de execução de uma obra não são necessariamente um empecilho para se conectar com ela. E eu, pessoalmente, senti. Me reconheci um pouco em Karsh, em seu luto, em sua raiva e em suas hipocrisias. Como eu escrevi no começo desse texto, "pontos em comum". Porém, mesmo que O Senhor dos Mortos seja claramente sobre a morte da esposa de Cronemberg, o diretor não vê nenhuma catarse em seu filme. Em entrevista para a Variety, ele revelou que não enxerga a arte como terapia. O luto não se resolve com um filme. "O luto é pra sempre", ele disse. Eu sei que ele está certo. Mas, às vezes, eu queria que não estivesse.

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