Quando se diz que um filme "conversa" com outro, significa que eles possuem temas em comum, ou que pelo menos um consegue responder ao outro, às vezes de maneiras inesperadas. Quando Justine Triet disse que escreveu uma cena em “Anatomia de Uma Queda” como resposta a outra de “História de Um Casamento”, de Noah Baumbach, isso não foi supresa para quem viu os dois filmes. Dá pra se enxergar um paralelo também entre “Ninfomaníaca”, do Lars Von Trier, e “Era Uma Vez Um Gênio”, do George Miller. Pois bem, enquanto eu assistia a “Oito Cartões Postais da Utopia”, novo documentário do diretor Radu Jude ao lado de Christian Ferencz-Flatz, o paralelo mais óbvio que me veio em mente foi com "Um Dia na Vida", de Eduardo Coutinho. São dois filmes têm muito a dizer um para o outro.
Se o documentário de Coutinho, que é uma montagem de um dia de programação da TV aberta brasilera, se propõe a significar a relação entre essas imagens variadas, o filme de found footage de Jude tenta fazer a mesma coisa, mas numa escala maior e mais didática. Dividido em oito capítulos - os cartões postais do título - o filme faz uma montagem composta por várias peças de propaganda que foram exibidas na TV romena nos últimos trinta anos. A montagem não foi conduzinda pensando exatamente nas intenções originais de cada comercial, mas por significados que eles ganham ao se relacionarem entre si, e que dizem muito sobre a personalidade da Romênia como país e como idéia. Elementos que até poderiam ser identificados em análise, ainda mais por que conhece um pouco da história e da sociedade do país, mas que se tornam muito óbvios quando expostos na forma que o documentário faz, até mesmo para quem não sabe nem encontrar a Romênia num mapa.
Por exemplo, no primeiro capítulo, intitulado "O Paradoxo Romeno", o documentário exibe os recortes seguidos de propagandas de bebidas alcóolicas, de seguro de carros, de supermercado, um comercial da Pepsi exibido na época da Copa do Mundo protagonizado por uma estrela do futebol romeno, entre outros. E apenas pela relação entre as imagens montadas daquela forma, sem nenhuma narração apresentando um contexto externo, o espectador aprende que o território da atual Romênia foi colonizada pelo Império Romano, que esse legado não está apenas presente na compreensão histórica do país mas na própria identidade do povo, e que a mídia romena estava acostumada a responder aos desejos dos consumidores de preservar tradições, mas começou a se comunicar de forma cada vez mais globalizada e genérica. Essa dinâmica se repete durante todos os 71 minutos do documentário. Em capítulos com outros nomes enigmáticos como "O Dinheiro Fala", "Miragem Mágica" e "As Idades do Homem", essa justaposição de imagens que seriam mundanas e esquecíveis ao serem exibidas numa TV ligada em qualquer sala de estar na Romênia, começam a montar um retrato muito nítido, não apenas do próprio povo romeno, mas da natureza humana em uma sociedade que é, em todos as aplicações da palavra, consumista.
Desse modo, se torna muito revelador assistir uma propaganda de coldres de arma sendo desfilados como um item de alta moda, ou outra em que um marido resolve comprar uma arma pra resolver o problema da esposa que não para de reclamar. Revelador por ser tnato hilário quanto perturbador. Isso tudo idealizado sob o olhar crítico e bem-humorado que Radu Jude já aplicou em filmes anteriores, como "Má Sorte No Sexo Ou Pornô Acidental", sem medo de usar silêncios desconfortáveis, como no capítulo intitulado "Anatomia do Consumo", em que várias imagens, sem som ou trilha de fundo, focam em partes dos corpos dos personagens dos comerciais, demonstrando o protagonismo do olho ao desejar, do dedo ao escolher e da boca ao consumir. Aliás, em "Má Sorte no Sexo" ele já havia usado essa tática de expor verdades sobre a sociedade romena usando propagandas aleatórias encontradas nas ruas. Aqui, ele apenas expandiu a proposta.
Mas, enfim, se a escolha mais óbvia de filme para conversar com esse novo documentário de Radu Jude seria, como eu disse antes, "Um Dia na Vida", acho que dá pra fazer melhor. Lembrei depois da comédia dos anos 90 "Crazy People - Muito Loucos", em que um bando de pacientes de um hospício se tornam publicitários criando campanhas que fazem muito sucesso por serem estranhamenmte sinceras. Acho que daria uma boa sessão dupla.
Compartilhe sua opinião!
Seja a primeira pessoa a iniciar uma conversa.