Meu pai nasceu em 1941, e veio da Iugoslávia pro Brasil quando era muito criança. E quando eu tinha a mesma idade, lembro de me sentir um pouco especial quando ouvia ele se referindo a si próprio como iugoslavo. Todos ficavam muito surpresos e interessados. "Nossa, seu pai é... o quê?!". "Iugoslavo, que legal". Isso até 1992, quando houve a Dissolução, e ao invés de "iugoslavo", ele começou a dizer "esloveno". Minha mãe continuou chamando ele de "gringo". Apesar das poucas lembranças, ele sempre nutriu um carinho e um interesse pela cultura de sua antiga terra. Até hoje ele escuta as músicas tradicionais de lá. Mas nem tanto interesse pela história e pela política. Os motivos da Dissolução da Iugoslávia nunca foram assunto na minha casa.
Essas memórias - ou a falta delas - foram comigo assistir a "Through the Graves the Wind Is Blowing", o novo filme do diretor Travis Wilkerson. Meio documentário e meio ficção, o filme mostra várias entrevistas que o diretor faz com o detetive Ivan Peric, enquanto ele investiga uma série de assassinatos na cidade de Split, na Croácia. O problema é que as vítimas são turistas. E todo mundo em Split odeio os turistas. A insistência do detetive em continuar investigando o coloca em atrito com seu chefe, com seus colegas e com a população em geral, e ele acaba sendo rotulado como um “uhljeb”, um termo ofensivo para um funcionário público inútil. Intercalando-se as entrevistas, o filme relata vários acontecimentos da história da Croácia durante e após a ocupação nazista até a Dissolução, todos narrados pelo próprio Travis Wilkerson, oferecendo sua perspectiva pessoal.
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Tudo isso é feito sob o estilo que Wilkerson já utilizou em outros projetos, como no documentário "Did You Wonder Who Fired the Gun?", de 2017, uma mescla de narração típica de podcast e linguagem de instalação audiovisual em museu de arte moderna, com momentos em que palavras são projetadas em loop sobre as imagens. Aqui esse estilo funciona bem melhor do que nesse outro filme em particular, apesar dos dois documentários terem algo mais profundo em comum: a motivação vir da experiência pessoal da família de Wilkerson com o fascismo. Se em "Did You Woner Who Fired The Gun?", Wilkerson analisa a memória de um assassinato cometido por seu bisavô rascista, em "Through the Graves the Wind Is Blowing" ele começa o filme contando sobre ter se mudado para Split com seus filhos e sua esposa, cuja família esteve implicada com os fascistas na Iugoslávia. E por isso se sentiu compelido a olhar mais adentro para esse passado sombrio, e como ele afeta o presente. É nessa realidade que vemos as consequências visíveis e paupáveis do que a Croácia passou. Há duas sequências em particular que demonstram isso. Uma é quando Wilkerson leva seus filhos pequenos para um local histórico onde ficava um dos antigos campos de concentração e fica incomodado por perceber que há pessoas lá rindo e posando para selfies. A outra é quando Wilkerson se propõe a sair pela cidade fotografando todas as pichações de suásticas e do símbolo da Ustaše, os cúmplices croatas do nazifascismo. Ele não demora muito para encontrar algumas dezenas. Essas marcas vivas do passado afetaram tantos dos eventos pós-Segunda Guerra até a Dissolução, que resultaram numa Croácia em conflito com a própria identidade. O que parcialmente explica, entre outras coisas, o ódio aos turistas e a ineficiência dos serviços públicos.
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Mas Wilkerson também encontra muita esperança e inspiração nessas memórias. As cenas em que ele relata a luta dos partisans iugoslavos remontam a imagem daquela que foi uma das maiores resistências à ocupação fascista dentre os países da Europa. Em especial, Wilkerson revela a história de Rade Končar, um dos maiores heróis da resistência croata, que matou vários membros da Ustaše. E há um deleite em sua voz quando ele repete as palavras mais famosas de Končar, quando ele respondeu um juiz que perguntou, após ele ser capturado e condenado à morte, se ele pediria clemência: "Não peço a sua clemência, assim como não te ofereço a minha". Essas sequências vêm embaladas pela melodia da música "The Partisan", cujos versos dão origem ao título do filme, e em vários momentos são exibidos sobre as imagens. É um antigo hino da resistência francesa, cuja versão em inglês ficou mais conhecida na voz de Leonard Cohen, que cantava: "Através dos túmulos, o vento está soprando, a Liberdade logo virá, e então nós saíremos das sombras".
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Eu sinto que tenho visto muitas sombras ultimamente. O esforço que Wilkerson faz de tentar entender o presente através do passado - por mais horrível que seja esse passado - me parece tão necessário. Mas fútil, pois somos tão poucos fazendo isso. Também há suáticas pichadas nos muros da minha cidade. E tanta gente se elegeu nessas últimas eleições usando o nome de Brilhante Ustra ou promovendo pautas racistas e homofóbicas. Ainda assim, há várias pitadas de humor que Wilkerson deixa em seu documentário. Um humor que serve para retratar o absurdo e o caos da atual sociedade croata, mas também demonstra um certo otimismo que deveríamos manter. Afinal, como ele próprio diz ao contar sobre um maluco anti-comunista que tentou derrubar o busto de Rade Končar, se machucou e teve que ser levado para o hospital: "Rade Končar ainda está f*dendo fascistas".
Preciso mesmo mostrar esse filme pro meu pai. Acho que ele vai gostar.
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