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Sleep: a estética aterrorizante do misticismo oriental

Spoilers

ChillJane, 20231106

CJ Rating: ⭐⭐⭐⭐

O diretor Yoo Jae-sun, um cineasta sul-coreano em ascensão que atuou como assistente de direção no filme Okja (2017) de Bong Joon-ho, trouxe seu longa-metragem de estreia Sleep ao Festival de Cinema de Cannes deste ano. O filme foi nomeado ao Câmera D’or e ao Grande Prêmio da Semana da Crítica. Sleep conta a história de um jovem casal cujas vidas viram de cabeça para baixo quando o marido desenvolve um transtorno de sonambulismo, deixando a esposa sem dormir com medo de que ele possa machucar o filho recém-nascido deles.

Inicialmente, pensei que seria um filme de terror induzido pelo realismo baseado no conceito de que “o casamento em si é um filme de terror” – o que seria interessante também, já que filmes como Garota Exemplar (2014), Mata-me de Prazer (2002), O Quarto Secreto (2011) e Namorados para Sempre (2010) vêm à mente. De fato, estou comparando Sleep a esses filmes. Porém, quando o Xamã aparece e avisa a esposa que seu marido está se comportando de maneira estranha porque está possuído por um fantasma, eu percebo que as coisas estão tomando um rumo diferente, e minhas expectativas mudam de forma dramática! Até o final, não está claro se isso é simplesmente causado pelo sonambulismo ou se uma vingança fantasmagórica está envolvida. O filme não oferece uma explicação definitiva. É aí que eu concluo firmemente que Sleep é, na verdade, um filme com um forte misticismo oriental e elementos de terror.

No passado, eu poderia ter acreditado que terror induzido pelo realismo devia ser muito superior ao terror induzido pelo misticismo porque o primeiro não envolve elementos supernaturais ou depende de coisas misteriosas e inexplicáveis. Para mim, mesmo se essas coisas são bem executadas em um filme, elas ainda parecem meros truques. Por outro lado, o último retrata e explora realisticamente a dinâmica de poder em casamentos heterossexuais.

No entanto, é evidente que meu gosto para filmes e minha filosofia cinematográfica estão mudando gradualmente conforme eu assisto mais filmes e ganho mais experiência de vida. Agora, eu particularmente aprecio a diversidade, a ambiguidade e as expressões regionais, étnicas e culturais únicas. Em poucas palavras, eu gosto muito de Sleep.

De fato, Sleep tem uma estrutura de roteiro muito delicada que incorpora o estilo de terror oriental. Ele tem duas ideias inteligentes. Em primeiro lugar, define o personagem do marido como um ator que não é famoso, mas ama atuar. No filme, a esposa começa a suspeitar de uma intervenção sobrenatural porque ele está dizendo frases estranhas durante o sonambulismo. E ela finalmente encontra o encerramento por conta de sua “atuação” (não sabemos se é mesmo uma atuação) como um fantasma. Em segundo lugar, ele apresenta um final feliz (no qual ninguém se machuca e o casal continua a se apoiar), mas não oferece uma explicação clara, deixando espaço para a interpretação do público. Um final ruim é sempre tendencioso e carece da possibilidade de autorreflexão.

Uma das características ou elementos essenciais do misticismo oriental é que a crença cria a existência, enquanto a descrença leva ao nada. Seja como for, não há resposta definitiva à interpretação deste mundo. Por isso, cada pessoa tem seu próprio jeito de viver, e tudo o que podemos fazer é ser consistente. Você pode acreditar em fantasmas e espíritos durante a vida, assim como a esposa no filme acredita que os mortos devem receber rituais dentro de dez dias após a morte, ou então eles causarão o mal. Você pode acreditar me vingança, olho por olho, e reparar o dano com vingança se não pode fazê-lo com gentileza. A realidade subjetiva da esposa seria: “Se você possuir meu marido e tentar machucar meu filho, vou sequestrar sua filha. Então, não é culpa minha que estou louca; é culpa do meu marido por não acreditar em mim”. Ou você pode passar a vida toda acreditando na ciência, assim como o marido no filme que acredita que tudo tem uma causa que pode ser explicada com fatos. As coisas não se resolvem porque não há evidências o suficiente, e todas as doenças por fim podem ser curadas através do avanço no conhecimento médico. Então, a lógica do marido é esta: “a culpa não é minha por estar doente; é da minha esposa por não acreditar em mim”.

O elemento místico oriental traz uma nova perspectiva aos filmes de terror – dão espaço para interpretações ambíguas, elusivas e polissêmicas. Se você estivesse aqui para perguntar de onde vem o terror em Sleep – seja o terror da natureza humana, da realidade, dos fantasmas ou do sobrenatural – a estética do misticismo oriental, na verdade, sugere que tudo pertence a uma única entidade que dá origem a muitas outras entidades. Sua beleza está no fato de englobar/permitir a coexistência tanto da realidade quanto das possibilidades.

O terror ou o encanto de Sleep está neste aspecto. Ele não se inclina para nenhum dos dois lados, mas fica no meio. Como um membro do público, você certamente tem o direito de escolher um deles, tal como acreditar que tudo é apenas uma farsa causada pela superstição feudal da esposa, ou que fantasmas e espíritos existem, e que o marido traiu a esposa. Você também tem o direito de aceitar todas as possibilidades e chegar a uma conclusão aparentemente ambígua – de que diante de forças sobrenaturais, o poder humano é muito frágil. Pode parecer que este dilema não pode ser resolvido através de esforços humanos e da união, mas ao mesmo tempo também parece possível superá-lo desde que ambas as partes confiem bastante uma na outra e tenham mais determinação. No final de tudo, porém, vidas aparentemente estáveis estão sempre propensas a colapsar a qualquer momento. Em outras palavras, não há resposta certa neste cenário, mas reflete o mundo real no qual vivemos, bem como nossas vidas – qualquer sistema moderno de aliança relacionado à natureza humana (inclusive o casamento) deve alcançar um equilíbrio delicado e estabilidade. O mesmo acontece com este filme à medida que tenta encontrar um equilíbrio entre fantasmas de alto conceito e a realidade referencial.

No entanto, meu único arrependimento em relação a este filme é que esse equilíbrio poderia ter sido administrado de uma maneira melhor. Conforme a história progride, o retrato da histeria da esposa nas fases finais do filme pode torná-la uma personagem desagradável, com a qual o público tem dificuldade de sentir empatia, fazendo com que o filme se incline levemente para a perspectiva do marido. Isto pode fazer com que o público que não está familiarizado com a cultura e o contexto oriental seja completamente influenciado pela interpretação do realismo do filme e perca o terror e a beleza do misticismo oriental.

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