O Exorcista: O medo vem do colapso da fé

A sociologia é uma grande disciplina e algumas de suas teorias ainda são aceitas pela sociedade, como “que tipo de sociedade produz que tipo de cultura". Seguindo essa linha de pensamento, surge, nos EUA da década de 1970, um filme de terror épico: "O Exorcista".

Deveríamos ser gratos pelo fato de os EUA dos anos 1970 serem relativamente sérios e os filmes de terror daquela época terem o mesmo tom. Aqui, o demônio não é um daqueles espíritos perdidos e errantes que rastejam para fora das televisões, ele tem um significado religioso, representando a antiga rivalidade entre a Igreja e o Diabo. E essa igreja faz parte do ramo mais conservador do Cristianismo: o Catolicismo.

De onde vem o demônio e qual é o seu propósito? O filme não explica, mas ele toma posse do corpo de uma menina virgem, algo considerado extremamente sagrado pelos cristãos – é, sem dúvida, uma metáfora forte, que blasfema contra ícones sagrados, induz a jovem a urinar em público, expõe suas partes íntimas aos médicos e até usa um crucifixo para se machucar. Para um país com mais de 70% da população cristã, este é o maior dos insultos – o que poderia ser mais absurdo do que a contaminação daquilo que é supostamente um presente do Senhor? A audácia do demônio, o desamparo do médico e a desesperança do padre contrastam fortemente, como se o fim do mundo estivesse próximo, mas a salvação prometida pelo Senhor estivesse distante. Não conseguimos pegar um poder emprestado: diante do demônio, tudo o que o sacerdote consegue fazer é borrifar água benta, recitar a Bíblia e fazer o sinal da cruz sobre o peito. Na presença do demônio, essas ações não servem para nada, pois o mal é tão avassalador que sentimos um profundo desespero.

A Bíblia nos diz que o demônio é um enganador natural, manipulando a mente humana e roubando almas; desde o início, o diabo tenta convencer os humanos a cometerem pecados. Tudo fica claro quando o padre Merrin encontra um fim trágico nas mãos do demônio e a jovem possuída revela um sorriso malicioso e misterioso: o diabo havia nos enganado o tempo todo. Ele finge ter medo da água benta, finge falar latim, finge estar à beira da derrota; ele exibe suas vulnerabilidades para nos dar um vislumbre de esperança, mas a esmaga quando lutamos para explorá-la. O diabo é muito poderoso, até mesmo usando a voz da falecida mãe do padre Karras para distraí-lo.

O público percebe que até mesmo o Senhor onipotente se torna ineficaz; as doutrinas fundamentais do Cristianismo, a Trindade e o conceito do pecado original são distorcidos pela violência do demônio. Seu nascimento parece ser uma anulação dos pecados para os quais Deus criou a humanidade, e ele assume o papel de Deus no Armagedom. Em vez de enviar os bons para o céu e os maus para o inferno, o julgamento do demônio condena todos à morte – é aqui que a fé vitalícia dos cristãos devotos desmorona. Assim como na cena do exorcismo, o padre Karras repete com a voz trêmula:"O poder de Deus se confessará a você!"; parece que ele está tentando reunir coragem levantando a voz, mas sua fé já começou a vacilar.

Falando nisso, é impossível ignorar o contexto dos Estados Unidos na década de 1970: uma mistura de Guerra do Vietnã, baby boom, movimento feminista, libertação sexual e cultura hippie. É como o rock impregnado com cheiro de maconha, desafiando continuamente as normas sociais conservadoras da época. Qualquer coisa que desafiasse a sociedade dominante era aclamada como heróica, o que perturbava a sociedade tradicional. Os EUA, passando por um período de mudança social, testemunharam vários movimentos ultrajantes, e o filme pode implicar o medo da sociedade em relação a novas ideias e a prevalência de pensamentos não convencionais. No contexto do filme, é uma luta pelo poder entre o Bem (a Igreja) e o Mal (o Demônio). A medicina moderna é satirizada como inútil, sugerindo que apenas a religião pode representar os medos e esperanças mais profundos do ser mais íntimo da humanidade.

Eu admitiria que a cabeça girando e o rastejar como uma aranha da garota tenham me assustado, mas, pensando bem, o que é verdadeiramente horrível é a atmosfera generalizada do misticismo religioso, a profanação de relíquias sagradas, o rosto sem emoção de Mary e a série de atos impuros de uma jovem. "O Exorcista" é mais do que apenas um filme de terror, ele também desperta reflexões profundas sobre religião, fé e mudanças sociais. A complexidade e os temas fazem dele um clássico, continuando a envolver o público em profundas explorações e discussões.

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